Uma Igreja que Enfrenta os seus Problemas
“Escolhei, pois, irmãos, dentre vós, sete varões de boa reputação, cheios do Espírito Santo e de sabedoria, aos quais constituamos sobre este importante negócio.” (At 6.3).
UMA EXEGÉSE DO TEXTO PRINCIPAL:
• O versículo ocorre em um momento estratégico na vida da Igreja Primitiva. O crescimento rápido da comunidade trouxe também desafios administrativos e relacionais.
Uma queixa legítima: a negligência na distribuição diária às viúvas helenistas exigia uma resposta madura e espiritual. ἐπισκέψασθε (episkepsasthe), traduzido como “escolhei”, é um imperativo aoristo médio. A ideia aqui não é uma escolha apressada, mas uma investigação cuidadosa, avaliando a vida e o caráter dos indicados. ἄνδρας (andras), “varões” no sentido de homens maduros, não apenas do sexo masculino, mas com maturidade moral e espiritual. μαρτυρουμένους (marturoumenous), “de boa reputação” vem de martureō, testemunhar. Implica que a comunidade e os de fora reconheciam a integridade destes homens. Não bastava que eles dissessem que eram piedosos; suas vidas eram evidência disso. πλήρεις πνεύματος ἁγίου (plēreis pneumatos hagiou), “cheios do Espírito Santo”. O verbo plēroō indica plenitude contínua, não um evento pontual. O critério não era apenas capacidade técnica, mas dependência constante do Espírito. σοφίας (sophias), “sabedoria” aqui não é mera inteligência ou astúcia administrativa. No contexto bíblico, especialmente na literatura sapiencial, sophia envolve discernimento espiritual e aplicação prática da vontade de Deus.
• O texto mostra que, desde o início, a Igreja discerniu que questões administrativas não eram secundárias, mas parte integrante da missão. O problema das viúvas não era “menor”, estava ligado à justiça, cuidado comunitário e testemunho público. A escolha dos sete, todos com nomes gregos, também reflete sensibilidade cultural, mostrando que a Igreja primitiva buscava resolver conflitos considerando as diferenças étnicas e linguísticas.
• Esse texto é um dos fundamentos do diaconato no Novo Testamento, ainda que o termo “diácono” (diakonos) não apareça diretamente aqui. A função descrita é de serviço (diakonia) às mesas, no sentido de organização e cuidado material, liberando os apóstolos para a oração e o ministério da Palavra. A passagem nos ensina que a liderança espiritual não é incompatível com excelência administrativa. A Igreja de hoje também enfrenta desafios que exigem líderes cheios do Espírito e da sabedoria de Deus, capazes de administrar com justiça e compaixão. O critério permanece atual: não basta habilidade, é preciso caráter, testemunho público e sensibilidade espiritual.
VERDADE PRÁTICA
Uma igreja cheia da sabedoria do Espírito age sabiamente para resolver conflitos de relacionamentos.
ENTENDA A VERDADE PRÁTICA:
• Uma igreja guiada pela sabedoria do Espírito Santo lida com os conflitos de forma madura, justa e espiritual, transformando tensões em oportunidades para fortalecer a comunhão e glorificar a Cristo.
LEITURA BÍBLICA – Atos 6: 1-7
Atos 6.1-7.
1. Ora, naqueles dias, crescendo o número dos discípulos, houve uma murmuração dos gregos contra os hebreus, porque as suas viúvas eram desprezadas no ministério cotidiano.
• multiplicando-se. Veja nota em 4.4. O número pode ter alcançado o total de 20.000 homens e mulheres, hebreus... helenistas. Os -'hebreus" eram a população nativa da Palestina; os "helenistas" eram os judeus da Diáspora. A absorção helenista de aspectos da cultura grega tornava-os suspeitos para os judeus palestinos. As viúvas deles estavam sendo esquecidas. Os helenistas acreditavam que suas viúvas não estavam recebendo porção adequaria de alimento que a igreja fornecia para as necessidades delas (cf. 1Tm 5.3-16).
2. E os doze, convocando a multidão dos discípulos, disseram: Não é razoável que nós deixemos a palavra de Deus e sirvamos às mesas.
• servir às mesas. A palavra traduzida por "mesas" pode referir-se às mesas usadas para questões monetárias (cf. Mt 21.12; Mc 11.15; Jo 2.15) bem como àquelas usadas para servir refeições. O envolvimento em questões financeiras ou no serviço de refeições os desviariam da prioridade mais importante (veja notai no v. 4).
3. Escolhei, pois, irmãos, dentre vós, sete varões de boa reputação, cheios do Espírito Santo e de sabedoria, aos quais constituamos sobre este importante negócio.
• sete homens. Não eram diáconos nos termos do ofício posterior na igreja (1Tm 3.8-13), embora realizassem algumas das mesmas tarefas. Estêvão e Filipe (os únicos dos sete mencionados em outros lugares na Escritura) eram claramente evangelistas, não diáconos. Mais tarde, Atos menciona presbíteros (14.23; 20.17), mas não diáconos. Parece, portanto, que nesse tempo uma ordem permanente de diáconos não havia sido estabelecida,
4. Mas nós perseveraremos na oração e no ministério da palavra.
• A oração e o ministério da Palavra (cf. v. 2) definem as mais elevadas prioridades do líderes da igreja.
5. E este parecer contentou a toda a multidão, e elegeram Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo, e Filipe, e Prócoro, e Nicanor, e Timão, e Pármenas e Nicolau, prosélito de Antioquia;
• Todos os sete homens escolhidos pela igreja tinham nomes gregos, o que indica que eram helenistas. A igreja, numa demonstração de amor e unidade, pode tê-los escolhido para retificar o aparente desequilíbrio envolvendo viúvas helenistas. Estêvão... Nicolau. Sobre o ministério de Estêvão, veja 6.9—7.60. Seu martírio tornou-se o catalisador para espalhar o evangelho além da Palestina (8.1-4; 11.19).
Filipe também desempenhou função importante na difusão do evangelho (cf. 8.4-24,26-40). Quase nada se sabe sobre os outros cinco. Segundo certa tradição antiga, Prócoro tornou-se o secretário do apóstolo João quando este escreveu o sou Evangelho, e Nicolau era um gentio de Antioquia convertido ao judaísmo.
6. e os apresentaram ante os apóstolos, e estes, orando, lhes impuseram as mãos.
• orando, lhes impuseram as mãos. Essa frase foi usada a respeito de Jesus quando curava (Mc 6.5; Lc 4.40; 13.13; cf. 28.8) e às vezes era indicativa de ser levado preso (5.18; Mc 14.46). No AT, ofertantes de sacrifícios colocavam suas mãos sobre o animal como expressão de identificação (Lv 8.14,18,22;). Mas ao sentido simbólico, significava a afirmação, o apoio e a identificação com uma pessoa o seu ministério. Veja I Tm 4.14; 1.22; 21 m 1.6; cf. Nm 27.23.
7. E crescia a palavra de Deus, e em Jerusalém se multiplicava muito o número dos discípulos, e grande parte dos sacerdotes obedecia à fé.
• Uma das afirmações periódicas de Lucas para resumir o crescimento da igreja e a difusão do evangelho (cf. 2.41,47; 4.4; 5.14; 4.31; 12.24; 13.49; 16.5; 19.20). muitíssimos sacerdotes. A conversão de grande número de sacerdotes pode ter contribuído para a ferrenha oposição que se levantou contra Estêvão, obedeciam à fé.
INTRODUÇÃO
A diaconia, no contexto de Atos 6.1-7, não nasceu de um ideal administrativo, mas de uma necessidade espiritual que exigia sabedoria e maturidade da igreja primitiva. A palavra usada no texto grego, diakonía (διακονία), significa serviço prático, mas no Novo Testamento carrega um sentido mais profundo: servir como Cristo serviu, com entrega sacrificial e amor incondicional (Mc 10.45). Desde o início, a comunidade cristã entendia que o crescimento numérico traz consigo desafios reais e que esses problemas não eram obstáculos para a missão, mas oportunidades para expressar o caráter de Cristo no cuidado mútuo. Ao surgir o conflito entre os grupos de crentes de origem hebraica e helenista, a igreja foi conduzida a buscar em Deus a solução. Essa decisão não apenas preservou a unidade, mas também fortaleceu a estrutura ministerial.
Como observa Antônio Gilberto, a escolha dos sete homens “cheios do Espírito e de sabedoria” revela que, para Deus, a competência espiritual precede a competência administrativa. Aqui, não há espaço para liderança apenas funcional; o serviço cristão nasce de um coração cheio do Espírito Santo, e não apenas de mãos habilidosas.
O texto mostra que o ministério diaconal não foi criado para estabelecer uma elite de líderes, mas para assegurar que a missão da igreja avançasse sem negligenciar os necessitados.
Craig S. Keener aponta que a decisão apostólica evitou que a igreja se tornasse centralizada apenas na proclamação verbal, lembrando que o Evangelho também se encarna em atos de justiça e compaixão.
Em outras palavras, a igreja não apenas pregava sobre o amor de Cristo; ela o praticava de maneira visível e organizada. Essa passagem também nos ensina que servir é um privilégio e não um peso. O apóstolo Paulo, escrevendo mais tarde, usou a mesma palavra diakonía para descrever tanto o ministério apostólico (2Co 4.1) quanto o serviço prático (Rm 12.7), mostrando que, no Reino, não existe distinção de valor entre a pregação e a ajuda aos necessitados.
Frank D. Macchia lembra que todo serviço espiritual é, em última instância, uma expressão da obra do Espírito. Por isso, quando a igreja organiza seu serviço com base na oração e na Palavra, o resultado é crescimento saudável, “a Palavra de Deus crescia” (At 6.7).
Hoje, essa lição desafia nossas igrejas a não negligenciarem a organização do serviço cristão. Precisamos de líderes e servos que unam integridade, sensibilidade espiritual e preparo bíblico. O chamado não é apenas para resolver problemas pontuais, mas para sermos canais do amor e da justiça de Deus em meio às necessidades. Que possamos examinar nossas comunidades e perguntar: estamos realmente servindo como Cristo serviu, ou apenas ocupando funções?
DIACONIA
• A palavra diaconia vem do grego διακονία (diakonía), que significa “serviço” ou “ministério”, especialmente em favor de outros. No Novo Testamento, descreve tanto o cuidado material (como assistência aos necessitados) quanto o serviço espiritual, sempre realizado com humildade e amor. Sua função é suprir necessidades práticas da comunidade para que a obra de Deus avance e a unidade da igreja seja preservada.
I. A IDENTIFICAÇÃO DOS CONFLITOS
1. Conflito de natureza cultural. Vamos começar observando que o conflito registrado em Atos 6.1 não foi meramente administrativo. Lucas nos apresenta um cenário em que diferenças culturais e linguísticas colocavam em risco a comunhão da primeira igreja. Os “gregos” (helēnistas), judeus que haviam vivido fora da Palestina e falavam apenas grego, sentiam-se negligenciados na distribuição diária. Já os “hebreus” (hebraioi), judeus nativos de Jerusalém que falavam aramaico, estavam no centro das decisões e da vida comunitária. A barreira linguística, aqui, é mais do que uma dificuldade de comunicação; é um obstáculo à plena unidade do corpo de Cristo, lembrando-nos que a Igreja não é imune a tensões internas quando culturas se encontram.
O termo usado para “murmuração” no texto grego é gongysmos, que sugere um descontentamento que começa de forma sussurrada, mas que pode corroer a comunhão se não for tratado com rapidez e sabedoria. Esse detalhe linguístico revela que o problema não começou como um confronto aberto, mas como uma insatisfação latente. É nesse ponto que vemos a sabedoria apostólica: não ignoraram a queixa, nem reagiram com dureza, mas reconheceram a legitimidade do problema e buscaram uma solução que preservasse a missão central, a proclamação da Palavra. Teologicamente, este momento nos ensina que a unidade da Igreja é inseparável da justiça no trato com todos os seus membros.
A exclusão, ainda que não intencional, fere o testemunho do Evangelho. Paulo mais tarde escreveria que, em Cristo, “não há judeu nem grego” (Gl 3.28), e aqui vemos um exemplo prático de como essa verdade precisava ser vivida no dia a dia. A solução proposta pelos apóstolos foi profundamente espiritual: levantar líderes cheios do Espírito Santo e de sabedoria, capazes de administrar essa área sensível. Essa escolha não foi meramente estratégica, mas pneumatológica, pois o serviço na Igreja é, antes de tudo, ministério diante de Deus.
Para nossas igrejas hoje, o texto nos chama a encarar nossos próprios conflitos, culturais, geracionais, sociais, com o mesmo zelo apostólico. É fácil mascarar tensões internas ou justificá-las como diferenças inevitáveis, mas o Evangelho nos obriga a confrontá-las com amor, verdade e ação. Negligenciar essas questões abre brechas para divisões que comprometem a missão. Precisamos perguntar: estamos tratando com igualdade todos os que Deus trouxe à nossa comunidade, ou estamos, inadvertidamente, favorecendo uns e ignorando outros?
Assim, Atos 6.1-7 não é apenas um relato histórico, mas um espelho para nossas congregações. A igreja que deseja permanecer saudável e fiel à sua missão precisa de líderes espiritualmente maduros e de membros dispostos a servir uns aos outros, superando barreiras que o mundo insiste em levantar. Quando o serviço é feito no poder do Espírito e com sensibilidade cultural, a Palavra de Deus cresce e a Igreja experimenta multiplicação como aconteceu em Jerusalém.
2. Conflito de natureza social. O versículo 1b de Atos 6 expõe uma ferida sensível no corpo da Igreja primitiva: a negligência para com as viúvas de fala grega. Lucas emprega a expressão “desprezadas” para traduzir a ideia do verbo grego παραθεωρέω (paratheōréō), cujo sentido é “ignorar deliberadamente” ou “deixar passar sem atenção”. Esse não era um detalhe administrativo irrelevante, mas uma violação da ética do Reino, que desde a Lei Mosaica ordenava cuidado especial às viúvas, órfãos e estrangeiros (Dt 10.18; Is 1.17).
Negligenciar essas mulheres era, na prática, ferir diretamente o coração de Deus, que “faz justiça ao órfão e à viúva” (Dt 10.18). O problema em Jerusalém revelava que a Igreja, apesar de nascer como um organismo vivo pelo sopro do Espírito Santo, também possuía dimensões organizacionais e sociais.
Conforme observa Gilberto (2011, p. 89), “o amor cristão não se limita ao culto; ele se manifesta no cuidado concreto, especialmente para com os mais vulneráveis”.
Por isso, o desequilíbrio social não poderia ser tratado como algo periférico: era parte integrante da fidelidade da comunidade ao Evangelho.
Craig Keener (2012, p. 1213) enfatiza que a distribuição diária (διακονία) não era mera filantropia, mas um testemunho público da fé, um reflexo tangível da comunhão (κοινωνία) produzida pelo Espírito.
A resposta apostólica não foi espiritualizar o problema nem reprimi-lo para evitar escândalos, mas reconhecer a falha e agir com sabedoria. Eles compreendiam que proclamar a Palavra e servir à mesa não eram ministérios concorrentes, mas complementares (cf. At 6.2-4).
Como lembra MacArthur (2017, p. 1532), a liderança da Igreja deve cuidar para que “nenhuma área de serviço seja negligenciada, pois a prática do amor fraternal confirma a veracidade da mensagem pregada”. Essa lição é urgente para nós hoje: uma Igreja que se diz cheia do Espírito, mas ignora necessidades sociais em seu meio, trai a própria mensagem que proclama.
A maturidade cristã exige equilíbrio entre missão espiritual e serviço social. Servir o pão da vida e o pão de cada dia não são tarefas antagônicas; são expressões de um único amor. As viúvas helenistas de Atos 6 nos lembram que Deus vê aqueles que, aos olhos humanos, parecem invisíveis. O cuidado para com eles é, em última instância, cuidado para com o próprio Cristo (Mt 25.40).
3. Qual é a prioridade? Um dos equívocos mais persistentes na vida da Igreja é imaginar que o cuidado espiritual é a única prioridade legítima, como se a dimensão social fosse um apêndice opcional. Essa dicotomia é estranha às Escrituras. Em Atos, a comunidade primitiva entendia que a διακονία espiritual e a διακονία material fazem parte de um mesmo chamado. A palavra, no grego, descreve tanto o serviço da Palavra quanto o serviço às mesas (At 6.2,4), deixando claro que não há hierarquia de valor, mas diversidade de função no mesmo Corpo. Quando a igreja privilegia apenas aquilo que “mexe com as emoções”, como eventos musicais e programações grandiosas, mas deixa à margem o cuidado com os necessitados, revela uma espiritualidade desequilibrada e distante do coração de Deus.
O Senhor, por meio de Isaías, denuncia um culto formalista que ignora a justiça social: “Porventura não é este o jejum que escolhi? Soltar as ligaduras da impiedade, desfazer as ataduras do jugo, deixar livres os oprimidos e despedaçar todo jugo” (Is 58.6). Jesus, no Novo Testamento, ecoa essa verdade ao afirmar que a prova do amor a Ele está no cuidado aos famintos, sedentos, estrangeiros e enfermos (Mt 25.35-40).
Como observa Fee (1994, p. 131), “a espiritualidade bíblica é inseparável da prática do amor concreto”. Isso significa que adorar a Deus “em espírito e em verdade” (Jo 4.24) não é apenas levantar as mãos em louvor, mas estender as mãos para servir. Negligenciar os mais vulneráveis é pecar contra a imagem de Deus no próximo (Tg 2.15-17). Se a Igreja não assumir essa dupla responsabilidade, corre o risco de viver uma fé desencarnada, que fala do amor mas não o demonstra.
O cristão maduro entende que a prioridade é obedecer a todo o conselho de Deus e isso envolve tanto anunciar o Evangelho que salva a alma quanto manifestar o Reino que transforma a vida aqui e agora.
II. A DELEGAÇÃO DE TAREFAS
1. O ministério da oração e da Palavra. Quando os apóstolos tomaram conhecimento do conflito que ameaçava a unidade da Igreja, eles perceberam algo essencial: cuidar dos necessitados não poderia enfraquecer o ministério da oração e da pregação da Palavra.
Em Atos 6.4, Paulo destaca que a missão da Igreja é dupla e inseparável, envolvendo tanto a leitourgia (λειτουργία), serviço devocional a Deus, quanto a diakonia (διακονία), o serviço prático ao próximo. Essa distinção mostra que o ministério apostólico não rejeitava a ação social, mas entendia que a eficácia da Igreja dependia do equilíbrio entre estas duas dimensões.
É fundamental entender que o conflito em Atos não era apenas uma questão administrativa; ele apontava para a necessidade de ordenação dentro da Igreja para que o cuidado social não comprometa a evangelização nem a intimidade com Deus. O verbo grego proseuchē (προσευχή), oração, aparece aqui junto com a proclamação da Palavra, sinalizando que o sustento espiritual é a base para o serviço eficaz.
Antônio Gilberto (2011, p. 102) observa que “o ministério da Palavra e o ministério da oração são as fontes que alimentam toda a obra de serviço”.
Levantar líderes para administrar as demandas sociais não significava uma fuga da missão espiritual, mas uma estratégia para preservá-la.
Craig Keener (2012, p. 1220) comenta que “a Igreja saudável não subestima a importância do ministério prático, mas cuida para que o ensino e a oração permaneçam no centro da vida comunitária”.
Esta sabedoria dos apóstolos revela uma verdade profunda: o testemunho da Igreja no mundo depende da sua fidelidade a Deus e do seu amor ao próximo. Portanto, o serviço social não é um complemento acidental, mas uma expressão inseparável do amor que nasce da comunhão com Deus.
A palavra diakonia não se limita à distribuição de recursos, mas inclui o cuidado integral, refletindo a compaixão de Cristo, que veio servir e não ser servido (Mc 10.45).
Ignorar esta dimensão é comprometer a identidade e a missão da Igreja. Que este ensinamento nos leve a uma avaliação sincera: estamos equilibrando nosso tempo e energia entre buscar a Deus em oração, ouvir Sua Palavra e servir efetivamente aqueles que dependem do nosso amor prático? O desafio da Igreja em Jerusalém continua atual, nos convocando a uma prática que integre fé e obras, oração e ação, Palavra e serviço, para que o Reino avance com poder e verdade.
2. Não há conflito entre tarefas. Não podemos ler Atos 6 como se o ministério da oração e da pregação estivessem em oposição com o ministério de serviço social. Não há essa contradição, onde um é considerado mais espiritual e o outro menos. Tudo faz parte de uma única missão da Igreja. Assim, se a igreja ora e prega, mas não cuida dos necessitados, ela falha em sua missão. Da mesma forma, se a igreja se torna apenas um centro social, negligenciando a oração e a pregação, ela perde a sua essência, deixa de ser Igreja de Cristo e, por isso, também falha em sua missão.
2. Não há conflito entre tarefas. Não existe conflito entre as tarefas que a Igreja desempenha. Ao ler Atos 6, não podemos pensar que o ministério da oração e da pregação está em oposição ao ministério do serviço social. Essa divisão não faz sentido à luz das Escrituras. Ambos são aspectos inseparáveis da mesma missão que Deus confiou à Igreja (At 6.4).
Se a comunidade ora e proclama a Palavra, mas deixa de cuidar dos necessitados, ela está falhando no chamado que recebeu. Por outro lado, se a Igreja se reduz a um mero centro de assistência social, esquecendo a oração e a pregação, também perde sua essência e deixa de ser fiel ao Senhor Jesus (Mc 10.45; Mt 25.35-40).
A verdadeira missão da Igreja é integrar esses ministérios, refletindo o equilíbrio perfeito que encontramos no próprio Cristo, que orava e servia ao mesmo tempo. Só assim a Igreja cumpre seu propósito divino e testemunha de forma genuína no mundo (Gilberto, 2011; Keener, 2012).
3. A Diaconia. No relato de Atos 6, os apóstolos destacam a importância de escolher homens capazes para cuidar de “este importante negócio” (At 6.3), termo que remete diretamente à ideia de diaconia, um serviço essencial e funcional dentro da Igreja. A palavra grega diakonia (διακονία) não se refere simplesmente a um cargo ou título, mas à função de servir, em especial a um serviço prático e necessário, como o de “servir às mesas”.
Essa função exercida pelos sete escolhidos revela que o foco não está no status ou hierarquia, mas na missão concreta de sustentar a comunidade. Por isso, a narrativa em Atos 6 fundamenta o que viria a ser o ministério do diaconato cristão, evidenciando que a diaconia é um serviço de alta relevância para a Igreja. É importante corrigir um equívoco comum: o serviço da diaconia jamais foi visto como uma função inferior. Ao contrário, os apóstolos deixam claro que esse “negócio” é vital e requer pessoas especiais, dotadas das qualificações bíblicas necessárias para o exercício fiel desse ministério.
A diaconia, portanto, é uma expressão prática do amor e da organização que mantém a Igreja saudável, refletindo a excelência do serviço cristão.
Quando olhamos para Atos 6, percebemos que a diaconia na Igreja primitiva tinha um caráter muito diferente do que vemos em muitos contextos atuais. Lá, não havia a noção de hierarquia que, por vezes, se infiltra em nossas estruturas. O diácono não era um degrau inferior na escada ministerial, tampouco um título transitório para alçar posições mais altas. Era, sim, um chamado específico para servir com dignidade e espiritualidade. É legítimo perguntarmos: até que ponto o diácono do século XXI reflete o perfil e a missão do diácono do século I? Paulo, ao instruir Timóteo (1Tm 3.8-13), apresenta as qualificações do presbítero e, logo depois, as do diácono.
Isso deixa claro que, embora funções distintas, ambas exigem caráter irrepreensível e vida cheia do Espírito. O diácono é um servo que coopera diretamente com aqueles dedicados à oração e ao ministério da Palavra.
Em Atos 6, os primeiros diáconos foram nomeados para assistir os apóstolos, cuidando das necessidades práticas da comunidade, especialmente na distribuição diária aos necessitados (διακονία τραπεζῶν-diakonia trapezōn,).
As Escrituras revelam dois aspectos inseparáveis do serviço cristão: a diaconia das mesas (At 6.2-3) e a diaconia da Palavra (At 6.4). Uma representa a ação social; a outra, a proclamação do evangelho. Nenhuma substitui a outra; nenhuma é mais importante. Ambas fluem do mesmo Espírito, exigem maturidade espiritual e devem ser exercidas com o mesmo zelo.
O Comentário Bíblico Beacon ressalta que “o serviço físico e o espiritual se unem como partes indispensáveis da missão da Igreja”.
A diferença entre os dois ministérios não está no valor, mas na forma e nos dons necessários para cada um. Deus chama uns para servir com a Palavra, proclamando e ensinando; outros, para servir com as mãos, socorrendo e cuidando. Ambos são expressão do amor de Cristo e instrumentos para a edificação do corpo. A Igreja só vive plenamente sua vocação quando reconhece, honra e investe nos dois ministérios, pois ambos refletem o caráter do próprio Senhor, que veio “não para ser servido, mas para servir” (Mc 10.45).
III. SEGUINDO OS PRINCÍPIOS CRISTÃOS
1. Privilegiando o caráter. Quando os apóstolos enfrentaram a necessidade de escolher servos para administrar a assistência às viúvas, a primeira exigência não foi habilidade administrativa, nem experiência em liderança, mas caráter.
O texto de Atos 6.3 registra que deveriam ser “sete homens de boa reputação, cheios do Espírito Santo e de sabedoria”. A expressão “boa reputação” traduz o verbo grego μαρτυρέω (martyreō), que significa “dar testemunho”, “ser atestado publicamente”, ou até “ser mártir” no sentido de alguém cuja vida comprova a verdade que defende.
Aqui, não se trata apenas de uma boa imagem social, mas de um histórico de integridade visível e reconhecida pela comunidade. É significativo que essa exigência anteceda até mesmo a condição de “cheios do Espírito Santo e de sabedoria”. Embora esses elementos sejam inseparáveis na vida cristã, Lucas apresenta primeiro a reputação, indicando que o testemunho público é um reflexo concreto da presença e da obra do Espírito.
Como observa MacArthur (2017, p. 1529), “o caráter de um líder é mais importante do que seu carisma, pois é a integridade que sustenta a autoridade espiritual”. Um líder com reputação ilibada comunica segurança ao rebanho e honra ao evangelho que professa (1Tm 3.7). O pastor
Antônio Gilberto lembra que “na Igreja, Deus não procura simplesmente pessoas capazes, mas pessoas aprovadas”.
A aprovação divina é confirmada pelo testemunho da comunidade, que vê na vida do líder o fruto do Espírito (Gl 5.22-23).
No contexto de Atos, os “que serviam às mesas” (διακονεῖν τραπέζαις - diakonein trapezais) lidariam com recursos materiais e pessoas vulneráveis; por isso, a honestidade era inegociável. Se para esse ministério de apoio exigia-se tamanha integridade, quanto mais para aqueles que apascentam todo o rebanho, zelando não apenas por bens materiais, mas por almas eternas (Hb 13.17). Esse princípio permanece válido e urgente. Igrejas que relaxam nos critérios espirituais e morais para funções de liderança abrem brechas para escândalos e para a perda de credibilidade diante do mundo. A verdadeira autoridade espiritual nasce de uma vida coerente com o evangelho, mesmo quando ninguém está olhando.
Como afirma Gordon Fee, “o ministério cristão não é sustentado por títulos, mas por vidas que refletem o caráter de Cristo”.
Assim, cada igreja local é chamada a avaliar cuidadosamente quem coloca em posições de liderança e serviço. A pergunta não é apenas “sabe fazer?”, mas “quem essa pessoa é diante de Deus e das pessoas?”. O testemunho que damos é parte da missão. Não se trata de perfeição, mas de integridade. Quando líderes e servos vivem com “boa reputação” diante de Deus e dos homens, a igreja não apenas cumpre seu papel administrativo, mas proclama, por meio da vida, a realidade transformadora do evangelho.
2. Exercitando os dons. Ao instruir a escolha dos que serviriam na diaconia, os apóstolos não exigiram apenas boa reputação. Eles disseram que deveriam ser “cheios do Espírito Santo e de sabedoria” (At 6.3).
A expressão “cheios” traduz o verbo grego πλήρης (plērēs), que indica plenitude constante, não um enchimento momentâneo. Não se trata apenas de ter experimentado a ação do Espírito em algum momento, mas de viver sob a Sua influência contínua, refletindo Seu caráter e Sua direção em todas as áreas da vida. Lucas, o autor de Atos, une aqui dois elementos indispensáveis: o poder do Espírito e a sabedoria prática. A “σοφία” (sophia, sabedoria) mencionada não é mero conhecimento intelectual, mas a capacidade de aplicar a verdade de Deus de forma correta e oportuna, guiada pelo Espírito.
Como observa Craig Keener, “a plenitude do Espírito Santo fornece poder, mas a sabedoria garante que esse poder seja usado para edificar e não para destruir”. Esse equilíbrio é vital porque é possível ter ortodoxia doutrinária e integridade moral, mas ser árido espiritualmente; assim como é possível ter dons carismáticos ativos, mas agir sem discernimento, causando mais divisão do que edificação.
O Comentário Bíblico Beacon destaca que “o Espírito Santo concede dons, mas também forma o caráter e a mente de Cristo no crente” .
Por isso, o ideal de Deus é que aqueles que exercem funções ministeriais vivam com integridade, mantenham a chama espiritual acesa e administrem seus dons com maturidade e prudência. A diaconia, embora voltada a tarefas aparentemente práticas, exige tanto sensibilidade espiritual quanto sabedoria para lidar com pessoas, recursos e conflitos.
Gordon Fee lembra que “o verdadeiro ministério espiritual é a junção inseparável entre carisma e caráter”.
Um sem o outro gera distorções: o carisma sem caráter leva ao abuso espiritual; o caráter sem poder espiritual leva à ineficácia ministerial. A Igreja de Atos nos mostra que o serviço cristão genuíno flui de corações cheios do Espírito e mentes moldadas pela sabedoria de Deus. Assim, a lição para a Igreja de hoje é clara: precisamos de líderes e servos que busquem diariamente ser cheios do Espírito e crescer na sabedoria. A diaconia, e todo ministério, não é mero ativismo, mas um exercício de dons espirituais sob a direção divina. O equilíbrio entre fervor espiritual e discernimento maduro não é opcional; é essencial para que o serviço glorifique a Deus e edifique a Igreja.
CONCLUINDO
A lição de Atos 6 nos lembra que o serviço cristão é inseparável de nossa identidade como corpo de Cristo. A Igreja verdadeiramente espiritual é também sensível às necessidades humanas. O mesmo Espírito que nos move à oração fervorosa e à proclamação fiel da Palavra também nos impulsiona a estender as mãos aos que sofrem.
No Reino de Deus, não existe oposição entre cuidar da alma e cuidar do corpo; ambas as ações são expressões da mesma graça. O texto bíblico mostra que a Igreja não glorifica a Deus quando ignora a miséria de alguém ao seu redor. O Pai não se alegra na desgraça de ninguém, pois Seu caráter é revelado no cuidado, na justiça e na compaixão (Dt 10.18; Tg 2.15-17).
Por isso, quando encontramos um necessitado, e sempre haverá, devemos lembrar os princípios estabelecidos em Atos 6: líderes preparados espiritualmente, serviço feito com sabedoria e uma comunidade disposta a agir. Essa postura não apenas supre carências imediatas, mas também fortalece a unidade, abre portas para o testemunho do evangelho e atrai a presença do Senhor sobre a Igreja.
Foi assim em Jerusalém: “crescia muito o número dos discípulos” (At 6.7). Quando servimos com equilíbrio entre espiritualidade e ação prática, a Igreja cresce não como mera instituição, mas como o verdadeiro povo de Deus, e o nome do Senhor é exaltado diante do mundo. A pergunta que permanece para nós é: em nossa comunidade, a oração, a Palavra e a compaixão caminham juntas? Se a resposta for sim, estaremos experimentando o mesmo mover que transformou Jerusalém, e veremos, novamente, Deus sendo glorificado por meio de uma Igreja viva, unida e atuante.
AMEM
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