10 de outubro de 2019

O Nascimento de um Líder Profético em Israel


O Nascimento de um Líder Profético em Israel

TEXTO ÁUREO

“E sucedeu que, passado algum tempo, Ana concebeu, e teve um filho, e chamou o seu nome Samuel, porque, dizia ela, o tenho pedido ao Senhor.”  (1 Sm 1.20)

VERDADE PRÁTICA

O surgimento de pessoas vocacionadas, como Samuel, pode ser o resultado da oração, consagração e ensino dos pais no lar.

LEITURA BÍBLICA EM CLASSE - 1 Samuel 1.20-28

INTRODUÇÃO

Samuel foi um dos maiores líderes do povo de Israel. Ele foi o último e o mais importante dos juízes, como também o primeiro da escola profética (Atos 3:24; 13:20). O profeta Samuel certamente é uma das figuras mais notáveis da Bíblia. A história de Samuel revela que ele era considerado a pessoa mais proeminente desde Moisés nos tempos do Antigo Testamento (cf. Jeremias 15:1).

O significado exato do nome “Samuel” é incerto, mas várias alternativas têm sido sugeridas pelos intérpretes. As principais são: “ouvido por Deus”, “aquele que provém de Deus”, “nome de Deus” e “prometido ou dado por Deus”. A vocalização do nome Samuel em hebraico sugere o significado de “ouvido por Deus”, mas isso é inconclusivo.


1 - O AMBIETE FAMILIAR DE SAMUEL

A unidade inicial de 1 Samuel abre com um registro da narrativa do nascimento de Samuel (1.1-28), inclui o hino de louvor e gratidão de Ana (2.1-10), e conclui com uma breve observação de que Samuel começou a servir o Senhor sob a direção do sacerdote Eli (1 Sm 2.11b). As dicas sintáticas, literárias e temáticas dentro do texto indicam que as cenas de abertura do capítulo 1 naturalmente associam 1 e 2 Samuel com o Livro de Juízes; porém, elas também sugerem que uma importante mudança na linha da trama da narrativa de Israel esteja acontecendo. Por um lado, 1 Samuel vem logo depois de Juízes na Bíblia Hebraica, unindo, assim, este livro com o anterior em termos de arranjo canônico. Entretanto, uma evidência mais substancial indica uma conexão mais forte com Juízes.

 O cenário de 1.1—2.11 situa-se no santuário em Siló, o mesmo local onde os homens de benjamim tomaram mulheres para si no final de Juízes (21.15-24). Além disso, a frase: Havia certo homem (1 Sm 1.1a) mostra uma íntima afinidade literária com a apresentação de Manoá, o pai de Sansão (Jz 13.2), bem como com as histórias de Mica (Jz 17.1) e do levita (Jz 19.1b). Essa relação canônica é acentuada pelo fato de que a história de Elcana e sua família acontece na montanha de Efraim (1 Sm 1.1a), o mesmo território tribal que é mencionado em Juízes 17. Como resultado dessa evidência, o público leitor é levado a deduzir que os eventos da abertura de 1 Samuel seguem naturalmente a época dos Juízes.

Outras considerações gramaticais e sintáticas, porém, indicam que a trama também está caminhando em uma nova direção. A sintaxe hebraica de 1.1a (Havia certo homem) indica o início de uma nova cena dentro da estrutura narrativa. Além disso, a introdução formal de um novo grupo de personagens no capítulo 1 (i.e., Elcana, Ana e Eli) assinala a abertura de uma sequência narrativa distinta. 

O surgimento de Samuel, em particular, transporta o cenário da história da época dos juízes para o período da monarquia. Samuel é essencial para o desenvolvimento do reinado de Saul (especialmente nos cap. 8—12), e ele é responsável pelo estabelecimento da monarquia de Davi também (1 Sm 16—2 Sm 24). Já que Samuel é o homem a quem Israel deve a sua monarquia, ele torna-se uma figura central durante essa fase transitória da história de Israel.

Embora o nascimento de Samuel funcione como o clímax do primeiro capítulo (1 Sm 1.19,20), a esterilidade de Ana (v. 2), o tratamento cruel de Penina para com Ana (v. 6,7), e a oração e o voto de Ana (v. 10,11) desenvolvem uma tensão palpável que precede o surgimento inicial de Samuel na história (v. 20). Além das duas esposas e do menino Samuel, essa unidade introduz ao leitor quatro homens que são cruciais ao enredo: Elcana, Hofni, Finéias e Eli. 

Enquanto Elcana basicamente desaparece da trama após o nascimento de Samuel, Eli e seus filhos desempenham um papel mais proeminente nos capítulos 1—3, pois servem como principais sacerdotes do santuário de Siló. Como sacerdotes de Siló, eles também agiam fundamentalmente como cuidadores da arca da aliança. O texto ainda indica que eles também contribuíram grandemente para a decadência moral e religiosa do sacerdócio nesse período.

A história de Samuel nos capítulos 1—3 está intimamente ligada ao santuário de Siló. Juntamente com Siquém (Js 24) e Gilgal (Js 5), Silo servia como um dos principais centros religiosos do passado de Israel. De acordo com o Antigo Testamento, tanto a tenda do encontro como a arca da aliança permaneceram ali nos tempos pré-monárquicos (Js 18.1-10; 19.51; 21.2; 22.9; Jz 20.26-28). Siló fica cerca de 30Km ao norte de Jerusalém, nas montanhas de Efraim. Recentes escavações arqueológicas apontam para as ruínas de um local cultual com extensivas características arquiteturais que podem ser datadas da primeira metade do século 11 a.C. (Halpern, 1992, p. 1214). Essa data o colocaria na época de Eli e Samuel aproximadamente (aproximadamente 1050 a.C.). Os filisteus destruíram o santuário posteriormente, um acontecimento ao qual Jeremias alude em seu livro (26.6,9).


Elcana fazia peregrinações anuais a Siló a fim de apresentar ofertas e sacrifícios diante do Senhor. É possível que essas peregrinações estivessem ligadas ao festival do outono conhecido como Festa dos Tabernáculos ou Sucote (Dt 16.13-15), mas o texto não diz isso diretamente. O texto também nota que suas mulheres, Ana e Penina, e seus filhos acompanhavam-no ao local sagrado regularmente.

Embora seja ilegal na sociedade ocidental moderna, a bigamia era uma prática comum no antigo Oriente Próximo. Nas culturas antigas, se a primeira esposa do homem não pudesse gerar filhos, compromentendo, assim, a preservação da linhagem da família e a geração de um herdeiro direto para os bens familiares, ele poderia tomar uma segunda esposa a fim de produzir um descendente masculino.

Embora fossem permitidos pela tradição mosaica (Dt 21.15), os arranjos polígamos frequentemente apresentavam uma ameaça política, econômica e social para a mulher estéril (Schneider, 2004, p. 46-61). Esses acordos matrimoniais também tinham o poder de inflamar fortes tensões dentro da unidade da família. Esse parece ser o caso da família de Elcana. A amarga rivalidade que se desenvolveu entre Ana e Penina tornou-se particularmente difícil para a primeira.

A dor e a frustração por causa da situação de Ana eventualmente a levou a pedir um filho em suas orações, o qual seria dedicado ao Senhor com um voto de nazireu. O Senhor respondeu à oração de Ana posteriormente, que cumpriu a sua parte do voto e entregou o menino a Ele. Assim, um dos principais propósitos dessa unidade introdutória é fornecer uma explicação acerca de como Samuel ficou associado ao santuário de Siló e, mais tarde, tomou o lugar de Eli e seus filhos como o principal sacerdote.

2 - A ÁRVORE GENEALÓGICA DE SAMUEL .

Elcana, o pai de Samuel, é descrito como um homem de Ramataim-Zofim. Em hebraico, esta frase literalmente significa “as alturas duplas de Zofim” Já que este local não é mencionado em nenhum outro lugar do AT, muitas traduções modernas tentam emendar o texto a fim de dar sentido a esta leitura. Alguns traduziram o texto para que leia “Ramataim dos Zufitas” (jps). Outra maneira, mais atraente, de traduzir esta frase é “certo homem de Ramataim, zufita” ou “um dos zufitas de Ramataim” (Tsumura, 2007, p. 107). 

As duas últimas opções preservam a linhagem zufita de Elcana (referida no v. 1b) e o coloca em Ramataim, que é a forma plural de Ramá. Ramá é designada como a cidade natal de Eli em 1.19 e 2.11,e tem sido associada à antiga cidade de Rentis, que está localizada a cerca de trinta quilômetros ao leste de Tel Aviv (também chamada de Arimateia no NT). A forma plural de Ramá (Ramataim, que também pode ser interpretada como “duas montanhas”) é utilizada aqui porque provavelmente havia duas montanhas associadas ao local: uma na cidade e a outra utilizada como um “lugar alto” (9.25).

Elcana é também identificado como filho de Jeroao, filho de Eliú, filho de Toá, filho de Zufe, efirateu (v. 1). O nome Elcana literalmente significa “Deus adquiriu (um filho?)”, e a inclusão da fórmula patronímica após o seu nome levanta algumas questões importantes. Primeiro, a inclusão de um registro tão longo de nomes pode indicar que Eli era um homem de alguma fortuna (Gordon, 1986, p. 72). 

A longa genealogia não só indica que ele veio de uma família abastada, mas o fato de que ele podia manter duas esposas também dá crédito a esta noção. É irônico, entretanto, que os homens/ enumerados em sua linhagem não sejam bem conhecidos e não desempenham um papel importante no AT. Apesar disto, a fórmula patronímica é uma concepção literária típica usada pelos escritores bíblicos para introduzir formalmente as figuras importantes como os profetas, sacerdotes, e/ou reis. O fato de que o texto inclui a árvore genealógica de Elcana como um prelúdio da chegada de Samuel é uma dica sutil de que Samuel seria especial; talvez até antecipando sua futura função como profeta e sacerdote (Mauchline, 1971, p. 42).

Segundo, o ancestral de Elcana, Zufe, que é apenas identificado como um efrateu, não descendia de uma família de profetas ou sacerdotes. Esta questão apresentou dificuldades peculiares para os editores posteriores e intérpretes da história de Samuel. Já que o texto indica que Samuel realizou funções proféticas e sacerdotais em Siló, as tradições posteriores compensaram pela inexistência da linhagem sacerdotal de Samuel. 

Primeiro Crônicas 6.16-28, 33-38, em particular, lidou com esta questão modificando a linhagem histórica de Samuel colocando Zufe como descendente de Levi. Esta importante mudança genealógica, desta forma, atribuiu a Samuel a descendência levítica (sacerdotal). Além do mais, o autor de Crônicas colocou Elcana e Samuel entre o clã coatita, cuja maior responsabilidade era cuidar da arca do concerto (Nm 3.31). E compreensível que o autor de Crônicas tenha colocado Samuel neste clã, considerando que ele teve alguma associação com a arca (1 Sm 3.3).

Os versículos 2 e 3 a fornecem mais informação sobre Elcana. Enquanto que o versículo 1 se refere à sua história ancestral, o versículo 2 fornece informação sobre suas esposas. No versículo 2a Ana aparece primeiro, indicando assim sua importância pessoal para com Elcana e sua posição como a primeira esposa. O nome Ana significa “graciosa” e, portanto, explicaria porque ela era favorecida por Elcana (Klein, 1983, p. 6). Penina aparece em segundo lugar, provavelmente enfatizando seu papel de esposa secundária. 

A ordem do nome delas é invertida, entretanto, na segunda parte do versículo. No versículo 2b Penina é mencionada primeiro com o acréscimo da informação que Penina tinha filhos enquanto Ana não tinha filhos. O texto posiciona Ana depois de Penina na segunda parte do versículo para lembrar ao público da condição estéril da última, que é crucial para o desenvolvimento da trama (Alter, 1999, p. 3). O nome Penina pode significar algo como “prolífica”, portanto, é uma denominação adequada à luz do fato de que ela foi capaz de produzir múltiplos filhos para Elcana (Klein, 1983, p. 6). 

O nome Ana também é sugestivo à luz de suas circunstâncias especiais porque é etimologicamente similar à palavra hebraica para favor (hên). Uma vez que ela não podia ter filhos no começo da narrativa, o nome de Ana mais tarde ganhou um novo significado quando o Senhor demonstrou favor a ela, não só provendo Samuel, mas vários outros filhos também (2.21).

O texto também menciona que Elcana viajava para Siló: Todos os anos esse homem subia de sua cidade a Siló para adorar e sacrificar ao Senhor dos Exército (1.3a). A construção gramatical do versículo 3a (miyyãmim yãmim = “de ano em ano”), acoplada aos dois infinitivos (adorar e sacrificar), é digna de menção porque indica uma ação contínua ou uma atividade consistente.
A referência da peregrinação regular de Elcana a Siló sugere que ele era um homem piedoso que temia ao Senhor. O versículo 3b conclui a subunidade mencionando que, quando Elcana ia ao santuário, Lá, Hofhi e Finéias, os dois filhos de Eli, eram sacerdotes do Senhor. O fato de que o texto não diz “Eli e seus filhos” sugere a noção de que o adorador esperava encontrar Hofni e Finéias no recinto sagrado, mas não Eli (Frolov, 2002, p. 140). 

Isto indicaria que Eli permanecia nos bastidores enquanto que seus filhos desempenhavam o papel de liderança na ministração naquele local. A referência aos filhos de Eli neste versículo também prepara o leitor para o próximo capítulo, no qual eles serão o assunto do foco do editor/narrador.

3 -  A FAMILIA DE ELCANA EM SILO

Esta seção reconta o que geralmente acontecia quando a família de Elcana visitava o santuário de Silo. A unidade se inicia no versículo 4a com a frase E sucedeu que, no dia em que Elcana sacrificava e prossegue nos versículos 4b-7a para fornecer uma nota parentética descrevendo as ações habituais de Elcana na época do sacrifício. Esses versículos recontam que ele dava porções à sua mulher Penina e a todos os filhos e filhas dela do animal sacrificado. Entretanto, ele dava uma porção dupla a Ana. 

O significado da última frase tem deixado os estudiosos perplexos durante gerações. A palavra hebraica que é empregada é a forma dupla Çapãyim) e literalmente significa “faces”. Alguns a têm traduzido como uma porção dupla (Hertzberg, 1964, p. 24), “parte excelente” (ARC), ou “em seu rosto”, como frustração pela incapacidade de Ana de prover filhos para Elcana (Frolov, 2002, p. 143).

À luz da frase seguinte que afirma que Elcana amava a Ana (JPS, “Ana era a sua favorita”), podemos provavelmente entender que Elcana apresentava a porção a Ana de tal maneira como lhe dando uma porção maior do que era o mérito, ou de uma maneira muito pessoal ou amável (portanto, “em sua face”), de forma que isto a honrasse (uma “porção de honra”, Caquot e de Robert, 1994, p. 33) acima de Penina. Segundo, o texto reconta que sua rival a provocava continuamente, a fim de irritá-la (v. 6).

O tratamento duro de Penina para com Ana é capturado mais precisamente em hebraico. Ela não somente mostrou hostilidade para com Ana (portanto, sua rival), mas também o fez de propósito a fim de “irritá-la” ou “embravecê-la”. Na linguagem de hoje, esta frase poderia ter sido traduzida como “amedrontá-la” ou “intimidá-la” (Mauchline, 1971, p. 46). A LXX não contém uma declaração sobre a “esposa rival” e como ela provocava Ana no versículo 6. Em vez disso, a dor de Ana é causada pelo Senhor que a impediu de gerar filhos. O versículo 6 da LXX diz: “Pois o Senhor não lhe deu filhos em sua aflição, e segundo o abatimento de sua aflição; e ela estava desanimada por causa disto, porque o Senhor cerrara a sua madre para não lhe dar um filho” Na LXX, o abatimento de Ana é causado por sua esterilidade, e não pela provocação de Penina.

A amarga rivalidade que o texto hebraico captura tão pungentemente existia porque Penina tinha ciúmes porque Ana continuava sendo a esposa favorita de Elcana, embora Penina produzisse filhos para ele. A rivalidade entre as mulheres de Elcana relembra semelhantemente os encontros entre Sara e Hagar (Gn 16.4-6) e Lea e Raquel (v.3 Gn 30.1-3). 

O ecoar dessas tradições da história patriarcal tem uma função importante na interpretação da história. Na história bíblica, os filhos nascidos de uma mulher previamente estéril geralmente indicavam algo peculiar ou especial sobre a posição daquela criança (i.e., Isaque, Jacó, José).
Já que o filho de Ana foi concebido com a assistência de Deus, o leitor fica na antecipação de que Samuel desempenharia um importante papel na sociedade de Israel. Os capítulos seguintes (esp. 1 Sm 3—7) indicam que este é realmente o caso. O versículo 7a encerra a informação parentética mencionando que este cenário acontecia ano após ano, quando ela subia à Casa do Senhor.

Assim, não só era a esterilidade de Ana uma fonte de sofrimento e humilhação, mas a repetida ridicularização que ela tinha de suportar, sem dúvida, provocava nela uma indescritível angústia e dor de cabeça. I 7 b-8 O versículo 7b se une ao versículo 4a mencionando que, em resposta a esta situação, Ana chorava e não comia na hora da refeição, enfatizando, assim, a sua intensa amargura.
Em certa ocasião, Elcana reagiu ao sofrimento de Ana perguntando: Por que você estâ chorando?Epor que você não come? Epor que seu coração estâ triste? Não sou eu melhor do que dezfilhos? Elcana, no versículo 8, basicamente “bombardeou” Ana com quatro breves perguntas para tentar amenizar os sentimentos dela (Fokkelman,.1993, p. 31).

A reação de Elcana, embora bem intencionada, essencialmente não compreendia a situação pessoal de Ana e ignorava desajeitadamente a raiz do problema dela. Embora Elcana tentasse, ele não conseguiu prover as palavras curadoras que teriam trazido um conforto duradouro para ela. No mundo antigo, a posição social da mulher, a estabilidade financeira, e a realização na vida eram encontradas na geração de filhos (Alter, 1999, p. 4). O amor e a atenção de Elcana, independentemente de quão significantes, nunca conseguiriam alcançar essas necessidades específicas da vida de Ana.

Olhando esses versículos em conjunto, então, percebe-se que o sofrimento de Ana era extremamente frustrante e inimaginavelmente difícil; ela era estéril, sua rival repetida e propositalmente a antagonizava por causa de sua esterilidade, e o seu marido era completamente alheio às suas próprias necessidades e à fonte de sua frustração, dor, e tristeza.

4 - SAMUEL FRUTO DE ORAÇÃO E O VOTO DE ANA

Esses versículos, 9-11 recontam a reação de Ana às suas circunstâncias difíceis. Em certa ocasião específica, Ana foi ao templo orar e apresentar sua angústia diante do Senhor. Já que o Senhor havia fechado o seu ventre, somente o Senhor, o doador da vida, poderia abri-lo (Evans, 2003, p. 16). Enquanto estava ali, o texto menciona que Eli estava sentado próximo dos umbrais das portas do templo de Yahweh (v. 9).

Embora Eli não viesse cumprimentar o povo quando eles vinham sacrificar, ele desempenhava alguma função (limitada?) no templo. Mais provavelmente, ele estava confinado à parte mais interna do santuário onde pessoas como Ana vinham orar. O texto do versículo 9 faz referência ao umbrais do templo, o que pode indicar que o santuário de Siló fosse uma estrutura mais permanente e não somente uma tenda religiosa como o tabernáculo das tradições do deserto (Klein, 1983, p. 8; veja SI 78.60, que pode indicar o oposto). Dentro do santuário, Ana orou ao Senhor e chorou abundantemente. A descrição do choro de Ana é significante. A sintaxe inclui o uso do infinitivo absoluto (bãkõh tibkeh) ao descrever a reação emocional de Ana.

A gramática pretende demonstrar um choro intenso (i.e., ela “realmente chorou”) ou um pesado choro por parte de Ana. Assim, o leitor recebe um vislumbre da intensa amargura que ela estava enfrentando.
A intensa oração de Ana nos versículos 10,11 também incluía um voto. Ela orou: Se realmente atentares para a aflição da tua serva, e lembrares de mim, e não esqueceres da tua serva, e deres a semente dos homens à tua serva, eu o entregarei a Yahweh todos os dias da sua vida e nenhuma navalha passara sobre a sua cabeça.
Duas questões importantes estão relacionadas com a oração de Ana. Primeiro, o pedido de Ana, para que o Senhor “atentasse” para a sua aflição e “lembrasse” dela, distintamente ecoa o sofrimento e o clamor dos israelitas quando estavam na escravidão do Egito (Ex 2.23,24; 6.5). O narrador, então, cuidadosamente traça uma comparação entre o sofrimento de Ana e as dolorosas lembranças dos ancestrais de Israel no Egito.
Segundo, o voto de Ana é significante porque não se dá no modo quid pro quo (i.e., se você fizer X, então farei Y). Ana basicamente disse, se você me der X, então eu lhe darei Y. O voto de Ana, portanto, indica que Samuel seria não somente um presente de Deus, mas o filho dela seria um presente para Deus (Hamilton, 2004, p. 215). Presume-se que Samuel seria um nazireu, pois ela prometeu que o cabelo dele não seria cortado (Nm 6.5; Jz 13.5; 16.17). A LXX e o 4QSama acrescentam ainda a menção de que ele não beberia vinho também. Ao examinar essa linguagem, torna-se aparente que o narrador faz uma conexão com o livro de Juízes, particularmente na história de Sansão. Diferentemente de Sansão, que fracassou em ser um nazireu e quebrava os seus votos em cada esquina, Samuel seria um nazireu exemplar, demonstrando grande fidelidade a Deus tanto como profeta e sacerdote. Esta reflexão “retrovisora” sobre a história de Sansão indica, portanto, que um novo capítulo e um novo futuro emergirão entre a liderança religiosa de Israel com o advento de Samuel.
5 - NAZIREU
O termo Nazireu deriva da palavra hebraica (nãzar) que significa "consagrar" ou "apartar". Os nazireus demonstravam sua devoção a Deus por meio de comportamentos distintos como a observação de proibições contra cortar o cabelo, beber vinho ou bebidas fermentadas, e tocar em mortos. Os nazireus, ou eram chamados por Deus, ou dedicados por seus pais desde uma tenra idade. 

Além de Sansão (]z 13—16) e Samuel, homens e mulheres poderiam fazer o voto e tornarem-se nazireus temporários por um tempo designado. O livro de Números fornece a legislação pertinente aos termos e obrigações do voto nazireu (6.1-21).

6 - A DEDICAÇÃO DE SAMUEL

Esta seção do texto registra o intercâmbio um tanto longo entre Ana e o sacerdote Eli no santuário de Silo. Enquanto Ana orava, Eli observava atentamente o comportamento e a linguagem corporal de Ana. A gramática hebraica, no versículo 12, concentra-se na acentuação do fervor com que Ana orava: Ana perseverava em orar diante de Yahweh. O significado do verbo (hirbetâ) nesta frase pode ser traduzido como “ser grande ou muitos”. Portanto, Ana “multiplicou” suas orações, ou ela orava “sem cessar”.

Eli não conseguia ouvir o que ela dizia e percebeu apenas que os lábios dela estavam movendo-se, considerando-a uma mulher embriagada, e ordenou-lhe que se apartasse do vinho (v. 13,14). Ana prontamente replicou à resposta rude e à acusação mal concebida de Eli, declarando que não era uma mulher bêbada que se entregara ao vinho ou à bebida forte (cobrindo assim a gama de bebidas intoxicantes), mas, ao contrário, em sua angústia, ela derramava a sua alma diante de Yahweh (v. 15).

7 - A IRONIA DESSE INTERCÃMBIO NÃO PODE DEIXAR DE SER OBSERVADA

Primeiro, a ineficiência de Eli como sacerdote fica óbvia. Como um sacerdote, ele deveria estar sintonizado com uma suplicante de coração angustiado. Ao contrário, ele foi incapaz de interpretar eficientemente as ações de Ana e falsamente a acusou de cometer um erro. Este é apenas um sinal que aponta para a infeliz condição da liderança religiosa e do estado geral das coisas no santuário de Silo.

Segundo, na resposta de Ana a Eli, o texto usa um verbo que é geralmente usado para derramar um líquido como descrição de sua oração (sãpak). O mesmo termo é o termo técnico que pode ser usado em conjunto com um sacrifício ou oferta que é derramada (Dt 12.27) ou como sinal de profunda contrição (Am 5.8; 9.6) e tristeza (Lm 2.19).

Assim, Ana não estava embebida em vinho ou bebida forte, mas estava derramando a sua alma - o tipo de oferta e derramamento que provinha de um coração amargurado e um espírito perturbado. Enquanto que os sacrifícios de Elcana eram do tipo tradicional, o sacrifício e a oferta de Ana incluíam um tipo de lamento. Além do mais, Eli erroneamente acusou a futura mãe de um nazireu (que seria obrigado a ficar longe do vinho e dos intoxicantes, Nm 6.3) de estar bêbada! A ironia é imensa, para dizer o mínimo.

Quando Eli percebeu seu grave erro, ele rapidamente começou a pronunciar a seguinte bênção sobre Ana: que o Deus de Israel lhe conceda o que você pediu (v. 17b). A construção desta frase em hebraico pode também ser tomada como uma promessa de que Deus iria verdadeiramente agir em favor dela: o Deus de Israel te concederá aquilo que lhe pediste.

É significante notar também aqui que entre os versículos 16-28 (inclusive o 2.20), palavras associadas ao verbo pedir (sã°at) ocorrem nada menos do que nove vezes. Isto pode ser visto no seguinte esboço (Hamilton, 2004, p. 215):

Versículo 17: Eli respondeu: “Vá em paz, e que o Deus de Israel lhe conceda o que você pediu”.

Versículo 20: E deu-lhe o nome de Samuel dizendo: “Eu o pedi ao Senhor”.

Versículo 27: Era este menino que eu pedia, e o Senhor concedeu-me o pedido.

Versículo 28: Por isso, agora, eu o dedico ao Senhor. Por toda a sua vida será dedicado ao Senhor”. E ali adorou o Senhor.

2.20: Eli abençoava Elcana e sua mulher, dizendo: “O Senhor dê a você filhos desta mulher no lugar daquele por quem ela pediu e dedicou ao Senhor”.

A constante referência do “pedido” ou da “petição” de Ana tem feito alguns eruditos enxergarem referências oblíquas ao rei Saul, e assim concluir que esta narrativa de abertura originalmente pertencesse ao seu nascimento (Stolz, 1981, p. 16).

Embora o nome de Saul seja derivado da forma passiva do mesmo verbo (sãul), não há evidência substancial fora desta narrativa para manter esta posição. Em hebraico, o narrador/escritor está usando uma construção gramatical chamada etimologia aliterante, onde ambas as palavras começam e terminam com as mesmas consoantes. O narrador/escritor deste texto usa deliberada- mente palavras similares para criar uma profunda dicotomia entre Samuel, por quem Ana pediu, e Saul, por quem o povo pedirá nos capítulos 8 e 12. O prenúncio é ainda mais patente: uma Ana estéril pede um filho que ela não tinha; mais tarde, um Israel estéril pede um rei que eles não tinham (Polzin, 1989, 24,25).

Imediatamente depois que Eli pronunciou esta bênção promessa para Ana, o texto menciona que ela seguiu seu caminho, comeu, e seu rosto já não estava mais abatido (v. 18). A bênção/promessa que Ana recebeu parece ter revivido os seus ânimos. Ela não somente participou da refeição que outro- ra rejeitava, mas a frase seu rosto já não estava mais abatido emprega um interessante jogo de palavras. O termo seu rosto {pãneyhã) soa bem parecido com o nome Penina, portanto, um trocadilho com o nome de sua rival indicando que ela não mais seria um problema ou preocupação para Ana.

8 – SAMUEL É APRESENTADO

O texto se desloca rapidamente da oração de Ana e da bênção promessa de Eli para o nascimento de Samuel; a resposta da oração de Ana. Quando o casal voltou de Siló, o texto imediatamente menciona que “Elcana conheceu a Ana, sua mulher, e o Senhor se lembrou dela” (1.19b ARC). O termo “conhecer” (yãdac) é usado no AT como um eufemismo sexual (Gn 4.1).

Entretanto, enquanto que Elcana conheceu a Ana, em um breve encontro sexual, o Yahweh realmente se lembrou dela. Que o Senhor “se lembrou” de Ana é uma referência direta à sua súplica no versículo 11, demonstrando, assim, que Yahweh “observou” o sofrimento de Ana e nunca se “esqueceu” de seu pedido. Uma alusão, mais uma vez, à tradição do Êxodo, onde Yahweh “viu” a aflição do povo, “ouviu” o clamor do povo, e “lembrou-se” de que a aliança que fizera com seus ancestrais não poderia ser ignorada. As semelhanças dessas duas tradições lembram ao público leitor que Deus cuida profundamente daqueles que estão vulneráveis e passando por sofrimentos.

Quando o filho de Ana nasceu, ela lhe deu o nome de Samuel, pois Eu o pedi ao Senhor (v. 20). O nome Samuel {semü° êl), entretanto, não é etimologicamente relacionado ao verbo “pedir”. Embora diversos estudiosos tenham tentado explicar o significado de seu nome, Samuel pode provavelmente ser mais bem interpretado como “Deus ouviu” (i.e., a oração de Ana). Ana cuidou de Samuel e o desmamou (provavelmente por volta da idade de três ou quatro anos; veja 2 Mac. 7.27) antes que o devolvesse a Yahweh. Uma vez que o menino alcançou uma idade suficiente, Ana foi ao santuário de Silo e apresentou os materiais para dois sacrifícios.

O primeiro consistia de “três bezerros e um efa de farinha e um odre de vinho” (1 Sm 1.24 ARC). Baseado na informação da LXX, 4QSama, e da Peshita, pode-se melhor traduzir isto como “um novilho de três anos e pão”. Esses elementos eram provavelmente designados a uma oferta pelo voto, tendo em vista o voto que ela fizera anteriormente (Nm 15.8-10).

A segunda oferta era muito mais valiosa e preciosa: o próprio menino Samuel. Ana trouxe (v 24a, b) Samuel ao santuário e o ofereceu ao Senhor, entregando-o aos cuidados de Eli. Embora dois verbos diferentes sejam usados no versículo 24 para referir que Ana “trouxe” Samuel (vãtã1 ãlêhü e vãtbi êhu)y ambos são verbos causativos, enfatizando, assim, o papel dela em entregar o menino a Deus. Ao apresentar Samuel a Eli, ela realmente cumpriu a sua parte do voto (v. 28). Samuel, essencialmente, tornou-se um “sacrifício vivo” ao Senhor como resultado do gesto de Ana.

O texto não revela como o fato de deixar Samuel em Silo a afetou pessoalmente, mas pode-se imaginar o alto preço emocional que ela pagou por deixar o seu único filho com Eli. O texto menciona que ela visitava Samuel uma vez por ano (2.19); é difícil crer, entretanto, que isto fosse proporcionar a Ana tempo suficiente para desenvolver um relacionamento íntimo com seu filho. O tipo de sacrifício e fidelidade demonstrada por parte de Ana se compara com o de Abraão que também demonstrou a disposição de sacrificar o seu próprio filho (Gn 21).

CONCLUSÕES QUE PODEMOS APRENDER NESSE TEXTO

1. Uma das coisas que aprendemos ao examinarmos a vida de Ana é que a vida nem sempre é justa. Deus nem sempre nos isenta de situações ou circunstâncias lamentáveis. Há momentos ou períodos na vida nos quais experimentamos dificuldades ou enfrentamos oposições que nos trazem sofrimentos ou dores de cabeça. Ao longo da jornada podemos até encontrar pessoas que pioram a nossa dor (como no caso de Penina) ou encontramos aqueles que tentam nos ajudar, mas estão alheios à nossa situação e necessidades pessoais (como no caso de Elcana).

Durante esses momentos da vida, aprendemos algumas lições importantes por meio da história de Ana.

Primeiro, estar intensamente atento àqueles que estão sofrendo. O AT consistentemente testemunha o fato de que Deus está do lado dos humildes, sofredores, fracos e oprimidos. Como os israelitas no cativeiro egípcio, Deus vê a dor de Seus filhos e ouve os clamores daqueles que estão sofrendo. Deus também está em ação no meio dessas situações para cumprir o Seu plano, mesmo quando podemos não estar cientes das intenções dele.

Assim como Ana, Deus lembra-se daqueles que clamam o Seu nome no momento da angústia e pode até extrair algo maravilhoso do nosso infortúnio. Como está testemunhado no hino de louvor e gratidão de Ana (veja comentário em 2.1-10), Deus exalta o humilde e dá honra ao fraco. Samuel representa um dos maiores líderes de Deus na história de Israel, no entanto, como os filhos de Sara e Rebeca, ele surgiu como uma bênção em tempos de incertezas.

Segundo, as próprias ações de Ana são instrutivas. Em um momento em que ela tinha poucas escolhas ou opções, Ana não perdeu a fé em Deus e levou as suas reclamações a Ele em oração e lágrimas.

O texto indica que Ana teve de enfrentar o sofrimento por um período de tempo, todavia, ela levou sua petição diante de Deus, Aquele que poderia verdadeiramente ajudá-la. Foi em sua grande angústia que ela clamou a Deus, e Deus olhou para a situação dela. Deus não somente atendeu a Ana provendo-lhe um filho, mas deu-lhe vários outros filhos também.

2. A fé e a piedade de Ana também emergem no texto. Ao pedir um filho a Deus, Ana não apresentou sua petição como uma tática de permuta a fim de chantagear a Deus: se você fizer isto, eu farei aquilo. Ana não foi presunçosa dessa forma, mas percebeu que se Deus lhe desse um filho, o filho seria devolvido a Deus como um presente/oferta. Há momentos em que as pessoas fazem transações com Deus a fim de garantirem que seus pedidos sejam realizados.

Essa atitude indica que os suplicantes não estão verdadeiramente preocupados em buscar a vontade de Deus, mas estão mais preocupados em obter ou adquirir o que é desejado. Além do mais, eles mascaram suas verdadeiras intenções com linguagem piedosa. Ana provou que o seu coração e a sua oração eram genuínos porque quando Samuel foi dado a Ana, ela o devolveu ao santuário como uma oferta viva de gratidão a Deus.

3. Aprendemos também uma importante lição sobre a conexão entre a adoração e o serviço. Samuel era um presente de Deus, e a sua vida foi caracterizada pelo contínuo serviço a Deus. Mesmo quando Samuel era um menino, o texto afirma em 2.11 que ele servia a Deus na presença de Eli. Outro modo de entender este texto é dizer que Samuel servia a Deus ao servir a Eli. Muitas vezes a nossa compreensão de adoração é muito restrita, pensando que a adoração apenas acontece em um santuário ou igreja.

O exemplo de Samuel nos lembra de que a nossa adoração também está ligada em cumprirmos nossas funções na família, no trabalho e na vida cotidiana. Esta compreensão de adoração não se aplica somente aos adultos, mas às crianças e aos jovens também. Frequentemente os nossos filhos têm o pensamento de que eles não podem fazer nada significante para Deus até que fiquem mais velhos. Todavia, é importante que eles entendam que eles adoram a Deus ao obedecerem e ajudarem a seus pais, ao se esforçarem para irem bem nos trabalhos escolares, e ao tratarem seus irmãos e amigos com respeito e carinho. Desta forma, a adoração está ligada às coisas que eles fazem diariamente. O mesmo é verdadeiro para os adultos.

Os adultos também adoram a Deus cumprindo suas funções como cônjuges, pais, empregados, e vizinhos nas melhores de suas habilidades. Geralmente as pessoas sentem que sua vida é apenas comum e que não estão fazendo um trabalho importante para o Reino de Deus. Elas podem acreditar que se não servirem a Deus em um país estrangeiro como missionários ou em uma função ministerial integral na igreja, a vida delas tem pouca relevância ou impacto no mundo. O texto nos lembra de que nós honramos e adoramos a Deus quando cumprimos as funções nas quais nos encontramos fielmente e de todo o coração, independentemente de quão comuns ou banais elas possam parecer. Lembre-se: Tudo o que fizerem, seja em palavra ou em ação, façam-no em nome do Senhor Jesus, dando por meio dele graças a Deus Pai (Cl 3.17).

BIBLIOGRAFIA

NOVO COMENTARIO BIBLICO BEACON 1 E 2 SAMUEL - KEVIN J. MELLISH, Editora Central Gospel Ltda, 1ª.  Edição: Outubro/2015